Após saída de arrozeiros, índios ocuparam fazendas com gado, mas ainda hoje sofrem com estradas precárias, falta de luz, água encanada e agora de médicos. Dez anos depois, governo Bolsonaro acentua tensão e índios temem novos conflitos.
Gabriel Souza, 44, e os filhos em fazenda 'herdada' após saída de não-índios da reserva — Foto: Emily Costa/G1 RR |
Cravada na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, voltou ao centro das atenções depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) falou em rever a demarcação de 17 mil quilômetros, concluída no governo Lula (PT).
A declaração, mesmo com o recuo ensaiado em seguida, reacendeu um debate ainda recente da história indigenista no Brasil. Em 2009, os últimos não-índios da região, na maioria arrozeiros e pecuaristas, deixavam a reserva após intensos conflitos e uma batalha judicial que terminou no Supremo Tribunal Federal (STF).
Para mostrar como os índios vivem uma década após a desocupação e em meio à polêmica proposta, o G1 percorreu quase 500 KM dentro da área em uma viagem de três dias por oito comunidades indígenas.
A Raposa Serra do Sol em 2019
A saída de cubanos do programa Mais Médicos também agravou a situação dos índios. Atendida pelo Distrito Sanitário Indigena Leste (Dsei-Leste), a área tinha os cubanos ocupando 90% do quadro de médicos e acabou desassistida com saída dos estrangeiros.
Por outro lado, livres para viver em toda a área - o que não acontecia antes da demarcação - os índios ocuparam fazendas deixadas por não-índios de maneira comunitária. Hoje apostam na criação de gado, que chega a 60 mil cabeças, no plantio de orgânicos e, mais recentemente, na piscicultura.
Retirados da área, produtores tiveram de migrar para outras regiões do estado, mas mesmo passados dez anos ainda não recuperaram a produção de antes.
Arrozeiros que plantavam 22 mil hectares em 2008, agora plantam só 9 mil, uma queda notável para o estado que tem 46% do território ocupado por terras indígenas e depende de repasses do governo federal para se manter.
Vida em fazendas 'herdadas'
A menos de 200 KM de Boa Vista, a capital do estado com maior percentual indígena do Brasil, uma família de índios macuxi acabava de se mudar. Gabriel de Souza, de 44 anos, a mulher, filhos e neta foram designados para morar na fazenda "Vai ou Racha", na região do baixo Cotingo.
O local foi desocupado após a saída dos não-índios da área determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no histórico (e apertado) placar de 10 votos contra um em março de 2009.
"Aqui temos 296 cabeças de gado. São da nossa comunidade [a aldeia Maturuca, a 150 quilômetros dali]", explica, enquanto maneja os animais. "Não se usa o banheiro da casa porque não tem água", diz a mulher Edirlene Marcela, 43. "Usamos um que tem fora [com buraco no chão] e para tomar banho vamos ao rio".
Perto dali, uma outra fazenda também foi reocupada. No local até havia água encanada, mas a bomba d'água quebrou há cerca de dois meses e a família não teve dinheiro para o conserto.
"Cobraram R$ 2, 2 mil e, como não temos como pagar, ficamos sem. É ruim, mas o que podemos fazer?", diz Maria Elda dos Santos, de 52 anos.
Ele explica que os animais são consumidos pela população indígena e, em menor escala, vendidos para custear necessidades coletivas como insumos agrícolas.
Falta de médicos
Com a assistência médica já comprometida por um incêndio no prédio do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste (Dsei-Leste) em Boa Vista, os índios agoram sofrem com a falta de médicos na reserva.
Das 72 vagas abertas para substituir os médicos de Cuba que deixaram seus postos de trabalho no estado, 30 são em áreas indígenas, incluindo a Raposa Serra do Sol, e apenas cinco delas foram preenchidas por médicos brasileiros.
Em outra comunidade, o mesmo problema.
"Atendemos principalmente casos de pneumonia, diarreia, infecções de pele e malária, mas sem médico aqui precisamos remover os pacientes mais graves para Boa Vista [a mais de 300 KM dali], o que gera atraso no diagnóstico e demora no tratamento", relata um enfermeiro.
E os arrozeiros?
Dez anos depois de saírem da reserva, os arrozeiros ainda relatam prejuízos com a desocupação e criticam a demarcação.
"Passaram-se dez e anos não se planta um metro de arroz lá dentro. Eu sei que eles têm outras produções, mas arroz que era o nosso projeto, não tem nenhum metro de arroz plantado ali", diz Genor Faccio, um dos rizicultores que foram obrigados a deixar a área.
Ele diz que após a demarcação, a reserva "caiu no esquecimento" e hoje está abandonada.
“O índio é tão capaz quanto nós, porém, ele precisa de incentivos e esses incentivos foram prometidos pelo governo federal na época. Só que se passaram dez anos e ninguém fez nada”.
Isabel Itikawa, presidente do Sindicato dos Beneficiadores de Grãos do estado de Roraima (Sindgrãos) diz ver como soberana a decisão do STF que demarcou a reserva, mas que concordaria em voltar a produzir na área se projetos defendidos por Bolsonaro como o arrendamento em áreas indígenas fosse colocado em prática na região.
"Hoje nós produzimos arroz em áreas fracionadas, porque não existe uma reunião de área aonde a gente possa investir e produzir em um lugar só. Então, se houver essa oportunidade, eu particularmente como produtora, não respondendo em nome do Sindgrãos, eu vejo como viável fazer um acordo entre o governo federal, entre a União e nós produtores".
Nova ebulição
As declarações sobre a questão indígena, o esvaziamento da Funai que perdeu a atribuição de demarcar terras indígenas e a transferência do órgão para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos estão entre os assuntos mais falados entre os índios da Raposa Serra do Sol. Até então, a fundação ficava sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça.
Mas o tópico, tema de assembleia que reuniu mais de 200 lideranças indígenas na reserva, nem de longe, é tão polêmico quanto uma possível revisão da demarcação.
O subprocurador-geral da República Antonio Carlos Alpino Bigonha, que coordena no Ministério Público Federal (MPF) a área responsável pela questão indígena, disse que é "impossível" juridicamente rever ou paralisar as demarcações indígenas no Brasil.
O entendimento é o mesmo para Cleber Buzzato, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Na avaliação dele, "a Raposa Serra do Sol é uma questão que o governo indica ser bastante emblemática e apesar de ser muito difícil conseguir revertê-la, é possível que ele [governo] invista em outras estratégias".
"Estão ocorrendo invasões possessórias e tomadas de terras indígenas como em Rondônia, Pará e Maranhão. São ações que, na nossa avaliação, estão acontecendo em decorrência do discurso anti-indígena que o governo tem adotado".
Se entre juristas há consenso de que não é possível rever o território da Raposa, para os índios não é diferente.
"A Raposa Serra do Sol já é um direito constituído. Não vai ser o presidente que vai mudar isso. O STF já decidiu", disse a deputada federal eleita Joênia Wapichana (Rede) em discurso na assembleia entre lideranças da região.
Primeira mulher indígena a ocupar vaga na Câmara, a advogada teve votação expressiva entre os índios da Raposa Serra do Sol, cuja demarcação em área contínua foi defendida por ela junto ao STF. O processo transitou em julgado em setembro do ano passado.
"A Funai, por mais que fosse fraca, era um apoio aos povos indígenas por ser o único órgão indigenista federal. O presidente a retirou do Ministério da Justiça e a colocou na agricultura, ocupada por ruralistas. Como é que se coloca na mão dessas pessoas os direitos de povos mais vulneráveis?".
Lideranças indígenas da área também veem com preocupação o novo momento. Para eles, uma eventual mudança na demarcação reacenderia o "barril de pólvora" na região.
"Hoje o índio é o fazendeiro dessa área. Nós já éramos donos dessa terra. Nascemos e vamos morrer aqui. Não tem outro lugar de onde viemos", responde Valquir Paixão, líder da aldeia Anike, que tem 30 moradores, ao ser perguntado sobre o futuro da Raposa e continua: "Vindo o que vier a gente vai se defender".
fonte G1
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